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"Ditadura financeira": Quando o dinheiro quer mandar no Estado

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    Editor BN
  • 4 de set.
  • 5 min de leitura

Uma análise à luz de Jean Ziegler, das investigações recentes no Brasil e de saídas possíveis.

 

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Resumo - Em Os Senhores do Crime (Record, 2003, 332 págs.), o sociólogo suíço Jean Ziegler argumenta que o crime organizado opera como uma versão “pura” do capitalismo sem freios éticos: busca lucro e acumulação, instrumentalizando brechas da globalização e o enfraquecimento de Estados nacionais. Duas décadas depois, o Brasil vive um caso de laboratório dessa tese: megaoperações revelam redes criminosas que lavaram dezenas de bilhões via cadeias formais - inclusive por meio de fundos e players do mercado financeiro na Faria Lima - enquanto o país se prepara para o julgamento de um ex-presidente por tentativa de golpe. O retrato converge para um fenômeno central: concentração extrema de poder econômico tentando capturar o poder político.

O que Ziegler antecipou

 

Ziegler descreveu, já em 2003, a simbiose entre globalização financeira, declínio do Estado e expansão do crime organizado, mapeando modus operandi, cadeias de lavagem e “armas judiciais e políticas” necessárias para defender a democracia. Sua obra permanece atual ao mostrar como cartéis atravessam fronteiras, usam intermediários financeiros, capturam autoridades e distorcem regras de mercado.

 

“Quando as finanças impõem a agenda, a fronteira entre mercado e Estado vira porta giratória - e o crime aprende a entrar por ela.”

 

Brasil, 2025: o dinheiro sujo procura a vitrine do dinheiro “limpo”

 

Nos últimos dias, uma megaoperação nacional expôs a infiltração do Primeiro Comando da Capital (PCC) na cadeia de combustíveis e no sistema financeiro, com movimentação acima de R$ 50 bilhões entre 2020 e 2024. As apurações descrevem capilaridade empresarial (postos, usinas, tradings), uso de fintechs, fundos de investimento e estruturas na Faria Lima para lavar recursos, com participação de agentes econômicos formais - alvo de busca e apreensão. Entidades do mercado reagiram prometendo colaboração.

 

O desenho do caso casa com a tese de Ziegler: quanto mais sofisticado e desregulado o circuito financeiro, mais fértil o terreno para o crime organizado se camuflar de “capital legítimo” — e, a partir daí, tentar influenciar políticas públicas e regulação para se auto preservar.

 

Política sob pressão: o julgamento que testa anticorpos democráticos

 

Em paralelo, o Supremo Tribunal Federal inicia, em 2 de setembro de 2025, a fase decisiva do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros réus por tentativa de golpe após a eleição de 2022. A acusação inclui formação de organização criminosa e atentado contra a ordem democrática. O caso é acompanhado dentro e fora do país e tornará a relação entre poder político, redes extremistas e financiamento um tema incontornável.

 

“Sem instituições fortes, a política vira ativo negociável numa prateleira onde o capital mais opaco sempre paga mais caro.”

 

O pano de fundo: concentração extrema de riqueza

 

A disputa institucional ocorre sobre um chão de desigualdade abissal. Bases internacionais mostram que o Brasil segue entre os países mais concentrados do mundo, com o topo abocanhando fatias desproporcionais de renda e patrimônio. Levantamentos recentes indicam participação elevadíssima do 1% no estoque de riqueza e do 10% no fluxo de renda, cenário que amplia o poder de lobby — inclusive para afrouxar controles.

 

“Ditadura financeira”: como funciona

 

Captura regulatória - pressão sobre reguladores, produção de “exceções técnicas” e leis sob medida.

Portas giratórias - dirigentes públicos que migram (ou voltam) para o setor regulado, levando acesso e informação.

Lavagem por intermediação - uso de fundos, fintechs e cadeias verticais (combustíveis, logística) para dar “lastro” a capital ilícito.

Financiamento político opaco - super-PACs informais, redes de comunicação e think tanks que empurram agendas pró-desregulação.

Judicialização seletiva - enxurrada de recursos para paralisar fiscalização e punir denunciantes.

 

As investigações da última semana mostram passos 3 e 1 operando em sincronia no Brasil; o julgamento no STF testa a resistência a passos 4 e 5.

 

O que fazer: uma estratégia de saída (viável no Brasil de agora)

 

1) Asfixia financeira do crime - “seguir o dinheiro” até o fim

Beneficial ownership em tempo real: cadastro público e auditável de proprietário final de empresas, fundos e imóveis; cruzamento automático com COAF, Receita e juntas comerciais. (Boa prática internacional e consenso entre organismos multilaterais.)

KYC/AML 2.0 obrigatório: due diligence contínua para fundos e FIDCs; trilhas digitais para operações com combustíveis e logística; responsabilização objetiva de gestores que ignorem alertas.

 

Cripto e fintech sob mesma régua prudencial: licenças escalonadas, provas de reservas e relatórios periódicos a COAF/BCB.

Confisco e destinação social ágeis: ampliar uso de perda alargada e leilão antecipado com fundo vinculado a educação e prevenção. (As operações recentes reforçam que o elo financeiro é o calcanhar de Aquiles do crime organizado.)

 

2) Higiene institucional do Estado

Anticorrupção “porta giratória”: quarentena robusta e transparência total de agendas; proibir atuação remunerada junto ao regulado por período mínimo.

Lobby regulado e rastreável: registro público de lobistas, agenda aberta e notas técnicas obrigatórias.

Proteção ao denunciante (whistleblower): recompensa, anonimato e foro especial para retaliações.

Fortalecer autonomia funcional de PF, MP, COAF e Receita para operações complexas interestaduais.

 

3) Política blindada do dinheiro fácil

Teto e rastreabilidade total de financiamento de campanha, inclusive em doações a terceiros e impulsionamento digital.

Mídias e plataformas: bibliotecas públicas de anúncios com CNPJs pagadores, valores e segmentação.

 

4) Reequilibrar o tabuleiro econômico

Tributação de riqueza: apoiar o padrão mínimo global de taxação de bilionários (≈2% a.a.) em discussão no G20/ONU, e harmonizar com um imposto seletivo sobre grandes fortunas e heranças no plano doméstico.

Auditoria de subsídios: revisar renúncias fiscais capturadas por setores com alta litigância ou riscos de lavagem.

Compras públicas “anticartel”: blockchain para editais, regra de open contracting, e listas negativas dinâmicas. (A agenda global de taxação dos ultrarricos ganhou tração em 2024–2025; o Brasil pode liderar.)

 

5) Sociedade e mercados como aliados

Certificação “anti-lavagem” para gestoras e bancos com auditoria independente e selo visível ao investidor.

Transparência setorial em combustíveis e logística (rastreamento de origem e notas fiscais sincronizadas).

Educação financeira com integridade: fundos de varejo devem exibir, em linguagem simples, sua política AML e exposição a riscos reputacionais.

 

Por que isso é urgente

 

Sem freios, o 1% mais rico amplia sua fatia com velocidade e converte poder econômico em poder político, socializando custos — violência, serviços públicos estrangulados, regressividade tributária. Análises da Oxfam e bases como o WID mostram que a concentração no topo segue em alta, e que países altamente desiguais têm piores anticorpos democráticos. A janela brasileira é agora: investigações financeiras em curso e um julgamento histórico oferecem momentum raro para reformas.

 

Conclusão

 

O enredo que vai da Faria Lima à economia paralela expõe o que Ziegler escreveu: quando o Estado fraqueja, o dinheiro sem lastro social tenta mandar. A saída não é retórica: é técnica, institucional e política — seguir o dinheiro, fechar brechas, proteger quem fiscaliza, blindar a política e recalibrar a tributação do topo. Democracias não se defendem sozinhas; organizam-se.

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FONTES PRINCIPAIS

Jean Ziegler, Os Senhores do Crime (Record, 2003). Amazon BrasilAmazonEstante Virtual

Operações recentes contra lavagem ligada ao PCC e setor de combustíveis/finanças (PF, Agência Brasil, VEJA, EXAME, UOL/DW, El País). Serviços e Informações do BrasilAgência BrasilVEJAExameGazeta do PovoUOL NotíciasEl País

Julgamento no STF do ex-presidente Jair Bolsonaro (AP, Reuters, CNN Brasil, The Intercept Brasil). AP NewsReutersCNN BrasilIntercept Brasil

Desigualdade e concentração de riqueza (Oxfam; World Inequality Database). CNN BrasilWID - World Inequality Database

 

 

 

 

 

 

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